Três diferentes iniciativas, ainda não implementadas, do governo federal, geraram reações em torno de uma possível “escalada autoritária” do Governo Lula/PT. Seriam as criações do Conselho Federal de Jornalismo (CFJ), da Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual (Ancinav) e a criação de um “código de ética”, que limitaria o direito do servidor de falar com a imprensa.
Antes queria dizer algo que tem muito a ver com todo o resto do texto e deste caso. Como cidadão, mas também da minha experiência passada como assessor de imprensa ligado ao PT e ao governo Marta Suplicy, um dos motivos que ainda me faz votar nela é a ferrenha oposição da imprensa, em particular da Folha de S. Paulo. Querida Folha, olha que ironia. De tanto bater, prefiro suas críticas ranhetas e livres, muitas vezes acertadas, outras tantas injustas ou apenas bobas, do que o cabresto voluntário diante de governos do PSDB, como o do Geraldo Alckmin. O PT te odeia, “você” (como se ambos fossem um ser) odeia o PT. Isso é democracia. Contém embate, ainda que longe de ser amplo e da melhor maneira possível, ou mesmo um debate honesto. Mas não é um consenso estúpido. Eu prefiro um PT sob pressão que um PSDB livre leve e solto para privatizar a Sabesp aos poucos, destruir a TV Cultura, ou ainda um PT sob as asas gentis da mãe Globo.Mas voltando mais diretamente ao assunto...
Quem achar que às três iniciativas recentes fazem parte de um plano coordenado de controle da imprensa pelo governo, certamente superestima, e muito, a coragem e capacidade organizacional e intelectual da gestão Lula.
Os projetos nasceram de fato de lugares mais ou menos próximos, e parte do PT realmente tem uma cultura autoritária, como é até certo ponto inerente a qualquer partido e governo, ainda mais quando piorar neste sentido é a triste tendência internacional. Mas as iniciativas são “coisas” bem diferentes e sua simultaneidade ocorre por coincidência. O governo encampou o projeto da Federação Nacional de Jornalista (FENAJ), por trabalho interno, entre outros, de Ricardo Kotscho, assessor de imprensa do Planalto, sem dimensionar a reação. E paralelo, ficou pronta a proposta do Ministério da Cultura de reforma do setor audiovisual. A simultaneidade reforçou a oposição aos dois projetos, uma por dinheiro (Ancinav), outra ideológica (CFJ). A primeira deve sobreviver alterada. A segunda deve ser engavetada, e talvez volte à baila mais adiante, mas acho que vai lá para o fim da fila, para o fundo da gaveta.
Como sou contra duas destas e acho uma deles importante, mas com ressalvas, lembro mais uma vez como é difícil o debate conviver não só na apatia, mas também no seu extremo oposto, na histeria. E o ritmo do mundo parece histérico...Por exemplo, vejo a capa da Veja, “a tentação autoritária”, e lembro que a revista defende, não critica nem considera autoritária, a autonomia do Banco Central, que é tirar a macroeconomia (juros, câmbio, regulamentação e fiscalização dos bancos) da esfera da democracia representativa, deixá-la para um conselho que não responde à sociedade. Isso não seria autoritário?
Proibir servidores de darem informações à imprensa é uma bobagem, uma violência. Tem que se qualificar o que é informação sigilosa e o que informação de interesse público. Uma já é restrita por natureza. A outra deveria ser o mais acessível possível, de formas não apadrinhadas, mas padronizadas. No espaço entre as duas, o servidor ter o direito de exprimir opiniões, percepções etc...
O Conselho Federal de Jornalismo é uma bobagem infinita, provavelmente criada para acomodar burocraticamente os novos burocratas do sindicalismo, a parte ornitorrinco desta classe. Embora a grande imprensa se oponha a ele pelos motivos errados, e baseadas em um conceito distorcido de liberdade de imprensa, que poderia ser traduzido como liberdade de empresa-vale tudo, a iniciativa para mim é nosense.
Primeiro por querer regular e restringir o que não deve ser restrito. Sou a favor da regulamentação para as empresas de comunicação, particularmente de radiofusão, sua propriedade, especialmente a cruzada, e que esta tem que ter um fim social, mas não para a liberdade de expressão. Nem para o exercício dela. Os crimes do jornalismo já estão previstos no Código Penal.
Segundo quando se compara o Conselho à Ordem dos Advogados, ou aos Conselhos de Medicina, Engenharia e Arquitetura, enfim, aos “profissionais liberais”. Jornalistas, principalmente os que exercem a profissão na grande imprensa, tem que cair em si de que não são “profissionais liberais”, com seu escritoriozinho e relativa independência, mas que sim executam um trabalho intelectual associado a uma estrutura industrial. Em outras palavras, um tipo de operário, com mais em comum do ponto de vista da estrutura da profissão com um metalúrgico do que com um advogado ou um médico.
Deste decorre o outro erro do conselho. Que é concentrar a punição no jornalista, ignorando as estruturas e vícios das empresas, como se pode ver agora com a revelação do caso Ibsen Pinheiro, 11 anos depois, que o buraco é mais embaixo, em cima e por todos os lados. Há um contexto e um cenário que este projeto de Conselho ignora.
Falando muito melhor que eu, o amigo e especialista na matéria, João Brant:
“1) A primeira é o fato de que se inverte o foco da regulação, das empresas para os jornalistas. Um dos grandes problemas da lei de imprensa é justamente o fato de responsabilizar não necessariamente a empresa, mas o editor, nos processos judiciais. E agora corremos o risco de oficializar que o problema está no jornalista, e não na empresa. Claro que a proposta não coloca o CFJ como espaço de controle dos meios de comunicação, mas essa questão fica meio nublada. Para a Fenaj não é essa a abordagem principal, mas sim o fato de poder controlar o processo de certificação. E aí vem o segundo ponto.
2) A luta histórica pelo controle público tem como princípio o fato de que a comunicação é um processo de interesse de toda a sociedade, e não apenas dos "especialistas". Se isso é verdade, então deixar na mão apenas de nossos pares as questões profissionais me parece uma incoerência. Deixando claro: para mim, é controle público para mediar o processo de regulação dos meios de comunicação (que é o principal, responsabilizando a empresa pelas questões fundamentais) e justiça comum nos casos que forem de justiça. O processo de certificação (que certamente significa também de "descertificação") significa dar a um conselho de "notáveis" o poder de julgar se você cumpriu ou não com a ética da profissão (o que para mim é uma armadilha. Nessa hora fico com o Cláudio Abramo e a ética do carpinteiro...). Isso enfraquece a própria entidade representativa, porque não é ela a responsável por esse processo diretamente, e passa a imagem de que a questão da comunicação se resolve separando os bons dos maus jornalistas, uma falsa dicotomia”.
A hipocrisia maior das empresas, que não tem dúvidas de exercer a sua “tentação autoritária” contra seus funcionários no dia-a-dia , se revela no projeto da Ancinav, e a oposição que recebeu, particularmente da Globo, que usou e abusou de “dirigismo” para mover seus canhões contra o projeto
A Ancinav mexeu no vespeiro de interesses poderosos, como aqueles que asseguram mercado para qualquer filme produzido nos Estados Unidos nas salas de exibição e na TV brasileira, impedindo, em conchavo com esta, que dê vazão, e olha que quando exibe tem boas audiências, de toda a produção nacional, assim como censurando a entrada da produção de outros países.
O que está se discutindo aí, não negando que o projeto tenha problemas, é a possibilidade de avanços e de posicionamento do país na produção audiovisual, reforçando o nosso cinema além da Globofilmes e melhor estruturando a produção independente para a TV. E é boa esta TV? Não, e é uma concessão pública, tem que cumprir um mínimo de papel público, não pode servir apenas de instrumento de sinergia midiática para alavancagem de capital. “Trata-se de afirmar ou não afirmar a capacidade do Brasil de ser um criador, um produtor e um difusor de conteúdos audiovisuais próprios.” – disse o ministro e músico Gilberto Gil, em histórico discurso na USP, que quem quiser, eu envio...Como se diz, o governo apanha quando erra e apanha ainda mais quando acerta. Outro texto interessante sobre o tema foi o da coluna de Luis Nassif, no sábado, também sobre este tema.
De todo este barulho, vê-se que se nossa liberdade de expressão, de informação, de comunicação democrática, depender das empresas, que tem pouco ou nenhum interesse nela, ou dos governos, que também pouco tem, estamos, para usar a palavra correta, fodidos. Não creio que a solução mágica e definitiva venha de um ou de outro, ou mesmo do embate deles, ou apenas de leis, ainda que estas e estes façam parte do debate, são poderosos, não possam ser ignorados, e podem ajudar ou atrapalhar. Mas a liberdade na comunicação vem das nossas atividades, no cotidiano de cada um de nós, jornalistas, leitores, espectadores, ativistas etc... É uma liberdade que não pode vir por procuração e não se constrói só na teoria. Ela acontece, e só acontece no momento em que nos movemos e testamos seus limites, de forma organizada ou entrópica. Ela é a sua liberdade, nossa liberdade, não dos Frias, dos Civita, dos Lulas, dos Gushikens, dos Jabás. E como será que esta anda?
FIM
PS: Poucos meses atrás aconteceu o processo de eleição da FENAJ. Participei apoiando a oposição à atual diretoria. Ninguém deu pelotas. Parecia um “não-assunto”. Perdemos. Hoje um dos assuntos então em jogo está aí na cara de todo mundo.
PS2: Talvez o melhor texto sobre tudo isso seja o de Tutty Vasquez. Hilário
PS3: Se o governo quer reforçar uma mídia livre e com orientação social, o melhor a fazer seria reformular a Radiobrás, tornando-a uma empresa de comunicação pública autônoma, com estatuto missão abrangente e mais recursos, presidente com mandato fixo, independente do governo e um conselho gestor com participação da sociedade civil, nos moldes da BBC...
PS4 e chega: Todo este barulho sobre governo e liberdade de imprensa, mas para a Cultura se desmilinguindo, e a Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo querendo cortar ainda mais verbas da TV, contratando consultoria privada para isso, a imprensa não está muito aí.