domingo, outubro 28, 2007

Sobre Tropa de Elite – A farsa oportuna do cinema “de personagem”

Do muito que foi escrito sobre “Tropa de Elite” decide abordar o que não vi em lugar nenhum a partir de uma discussão menos “sócio-ideológica”, mas mais a partir do filme em si. Sou obrigado a concordar com os que dizem que um filme fala por si só, sem precisar de mea-culpa da sua equipe em relação a leitura política feita pelas pessoas a partir do filme. Ainda mais quando a principal diferença, entre a “esquerda” e a “direita” sobre o filme não é sobre seu claro sentido pró-violência policial (que chega a tortura) e que responsabiliza fortemente os usuários pela violência do tráfico. Direita e esquerda fazem essa mesma leitura do filme. Elas discordam em relação a se isso é bom ou ruim, necessário ou bárbaro. E não é essa a questão que quero tratar nesse texto.

O que impressiona é a necessidade dos envolvidos de se divorciarem tão fortemente do que o filme promove, com declarações pró-descriminalização das drogas, e particularmente a de que o filme não seria a visão do diretor sobre o problema, mas a “do Capitão Nascimento”. Um ator dizer isso, vá lá. Mas com essa, Padilha estréia na ficção com uma novidade incrível. Ele teria inventado o filme onde o autor não é o diretor, nem o produtor, estúdio ou mesmo o roteirista, mas um personagem. “Tropa de Elite” seria um “filme do Capitão Nascimento”. Tenha dó...


A verdade é que todos os personagens de Tropa de Elite são muito rasos. O traficante, os jovens da ONG, os policiais corruptos são esquemáticos, e a esposa de Nascimento quase não existe. O único que não é raso é justamente o capitão, menos por força do roteiro e mais do incrível ator que é Wagner Moura. Aliás, não é o discurso direitoso por si só, mas são justamente os personagens ralos, sem motivação ou contraditório, com a exceção de Moura carregando o filme, a lógica maniqueísta, a produção impecável, holywoodiana, e as cenas de ação espetaculares, com violência muito além de holywood, que fazem o filme ser um sucesso, inclusive popular.


Esconder-se atrás de que o filme é a “visão do Capitão Nascimento”, isso para um diretor de cinema que deveria se prezar é pura covardia. “Tropa de Elite” é o anti “Nascido para Matar” (Full Metal Jacket). Aquilo que no treinamento militar mostrado por Kubrick era trágico, e culminava com o homem morrendo por dentro ao matar a vida do inimigo, em Padilha torna-se um ritual de amadurecimento e de superação do “aspirante”. O que em um era crítica ao som de Stones, no outro é funk exaltação.


Como o mesmo Padilha, do brilhante e humano documentário “Ônibus 174”, sobre o mesmo tema da violência urbana, resultou nesse diretor do “Tropa de Elite”? O que existe de um autor, de algum projeto, de algo a se dizer, entre um filme e outro? Isso resulta em mais duas perguntas, sobre dois oportunismos: quanto Padilha aparece como autor, mas não “apita” completamente sobre seu filme? Quanto em “Tropa de Elite” não é justamente onde vai dar a lógica de mercado e de espetáculo “pop”, onde a execução de projetos e sua “ética” perante os investidores significa muito mais do que a ética que em relação à obra, ou às suas próprias idéias? Porque minha impressão é que a única coisa que pode unir em uma linha um documentário humano sobre uma história incrível e um filme que torna pop a violência policial é o oportunismo. Ali, era oportuno ser compreensivo, complexo, explicar as razões sociais. Aqui, é oportuno ser espetacular. O diretor é um corretor de investimentos em projetos cinematográficos?


São questões chatas, mas tratar cenas de ação em comunidades carentes com estética de Counter Strike não pode ser uma coisa impune. Posar de diretor quando isso é bacana, e para manter uma mística “autoral” quando tem grana e empresas grossas por trás de ti definindo rumos, e jogar os questionamentos morais ao filme nas costas de um personagem fictício, não dá para ficar sem ao menos um questionamento. Fazer piada de montagem com tortura, como no corte logo após o enterro de Neto, não dá para fingir que o diretor não sabia o que estava fazendo. Dizer que o contraponto da violência policial de um personagem de ação infalível é ele ter uma família disfuncional, quando as cenas com essa família são fracas, e seu desfecho aberto some para o espectador, pálido em relação a avalanche pop das cenas de ação, é fingir uma incompetência e burrice que Padilha certamente não tem. Ele que exerceu opções, não Nascimento.


Tanto não tem essa ingenuidade, e são tão espertas e “oportunas” as pessoas por trás do filme, que a notícia é que no exterior ele será narrado pelo ponto de vista do personagem André Mathias, e provavelmente terá outra montagem. Não são nada bobos. Sabem que o discurso de extrema violência que aqui gorjeia e se aceita, baniria o mercado para o filme lá fora. Transformarão em uma história passional de hesitação em torno da vingança pela morte injusta do amigo, combinado com a dificuldade de aceitação social. Melhor ainda que o personagem é negro, porque isso dará o fundo do racismo da classe média. Outro mercado, outra obra, outro discurso. Como discutir autoria artística e ética cinematográfica com essa gente? Autoral, para eles, é só proteger o dim-dim do copyright partindo para cima dos camelôs que te divulgam, mas estragam os lucros do lançamento do DVD.

PS: De "anexo", segue abaixo texto do diretor Carlos Reichenbach (http://redutodocomodoro.zip.net/) sobre o filme. Não concordo com tudo, mas é muito interessante.

APONTAMENTOS PARA UMA POLÊMICA ANUNCIADA

de Carlos Reichenbach


DE EISENSTEIN A RIEFENSTAHL — Fazer cinema é também fazer escolhas. Ao optar por um discurso, seja ele de direita ou de esquerda, sem distanciamento ou autocrítica, o cineasta esbarra, queira ele ou não, no proselitismo. E o proselitismo tende a ser a morte da arte. O que não impede que, mesmo comprometida, a obra venha a ter certa importância histórica.

Sergei Eisenstein, por exemplo, não deixou de revolucionar a linguagem cinematográfica por ter feito filmes de encomenda. A alemã Leni Riefenstahl pode ter sido uma persona abjeta, mas sabia filmar magnificamente bem. Se bem que o seu ápice foi ter se voltado, no fim da vida, a outro universo abissal: o fundo do mar.



DE SÓCRATES A BENJAMIM - Os filósofos, de Sócrates a Walter Benjamim, dizem que o pensamento humano não pode ser monolítico. Ele é construído de rupturas. Benjamin acredita que a ruptura é inevitável, mas que existe uma continuidade subterrânea na ruptura. Venho de uma geração que trocou as certezas absolutas pelas dúvidas transgressivas ("eu não sei o que eu quero, mas sei o que não quero") e espera que a criação artística espelhe perplexidades, encantamentos e/ou sensações submersas. Do contrário, é expressão inócua.



A ESCOLHA DE PADILHA — Ao escolher o ponto de vista do policial assumiu um risco bastante capcioso que, somado aos compromissos comerciais do filme, resultou numa combinação perigosa. Isso, aparentemente, levou o filme para a direita, independentemente das suas intenções. Uma postura mais libertária teria, por exemplo, levado o aspirante Matias a atirar no Capitão Nascimento quando este fica esbravejando em seu ouvido, enchendo o saco e induzindo-o à barbárie.

Seria uma solução genial, anárquica, à altura de um Samuel Fuller. Mas um caminho como esse ia detonar o filme comercialmente, assim como, por exemplo, se o menino sob tortura não dissesse nada, levasse o cabo da vassoura, e, mesmo assim, calasse, deixando protagonistas e público perplexos. Mas essa minha observação é uma postura muito confortável para quem avalia uma obra acabada à distância.

Outros filmes brasileiros experimentaram observar e entender o viés do repressor. O ótimo "Eu Matei Lúcio Flávio", de Antonio Calmon, também foi chamado erroneamente de fascista. Um filme de direita não é necessariamente reacionário ou fascista. O excepcional curta metragem "O Inspetor", de Arthur Omar, talvez seja o filme que melhor tenha retratado o imaginário transversal e dilema ético do policial.



O BANDIDO-HERÓI: OUTRO LADO DA MOEDA — Em que pesem as críticas pertinentes, “Tropa de Elite” é uma obra interessante porque não tem medo de lidar com um tema cabeludo e estimular uma discussão necessária: até que ponto se justificam a coação e a tortura na repressão ao crime organizado. Em matéria de cinema brasileiro, isto é uma ruptura radical com a geração dos anos 60 que adotou a ótica do marginal como resposta ao ideário do poder vigente da época. A verdade é que os tempos do "seja bandido, seja herói" já não se justificam mais. Marginal virou uma expressão pejorativa, antítese de transgressão.

O filme ficou suscetível também a uma cobrança obsessiva e atual em cima das obras que retratam o momento histórico do país. Alguns dos que criticam “Tropa de Elite" são os mesmos que atacaram “Batismo de sangue”, de Helvécio Ratton, por enxergar com simpatia e tolerância a fragilidade os padres dominicanos que sucumbiram sob tortura. Ora, ambos os filmes me despertaram o interesse e trouxeram à baila assuntos traumáticos e urgentes.



POUND, ELIOT E OS NOSSOS FASCISMOS — A preocupação de quem assiste não deve ser com lado que, aparentemente, o filme se coloque, mas com o fato dele estar atrás ou à frente de seu tempo. É a mesma coisa que falar mal da obra de Ezra Pound pelas posturas fascistas dele em vida, ou de TS Eliot porque era monarquista.

Ambos são poetas extraordinários, cuja obra transcende as sombras de suas personalidades. A obra de arte talvez seja o único espaço livre onde podemos expor as nossas idiossincrasias, as nossas vilanias, os pequenos fascismos de cada dia. O câncer da criação artística é a autocensura. Embora a responsabilidade nunca deva ser negligenciada, criação e invenção pressupõem risco.