PARTE 1 – LUGAR É DONDE ESTÁ E DONDE SE VÊ O MUNDO
Prometi semana passada, cabe cumprir, escrever sobre as eleições 2004, antes que seja tarde e as mesmas passem. Não tenho como ser, ou vestir a camisa do “imparcial”. Criamos uma situação onde a eleição se torna o espaço onde justamente não pode haver debate político. De um lado, o discurso publicitário do bom mocismo, da busca do centro, da não ofensa ou da ofensa sistemática, de dizer o que querem ouvir. De outro a ficção da imparcialidade jornalística que tenta se colocar acima, mas não só não se coloca, como por fim nega a legitimidade das diferenças de projeto, dos diferentes interesses de acordo com classes sociais e questões específicas, e do conflito entre esses. No fundo, embora creiam ser, publicidade e (in)certo jornalismo, antagônicos, andam de mão dadas, completam-se e em parceria escondem, e repito, deslegitimam as disputa reais que estão em jogo nesta eleição de São Paulo. Esmagam o dissenso.
Prefiro tentar vestir a honestidade das minhas dúvidas, opiniões, posições e relações. E daí explicar os porquês dos meus porquês, na eleição majoritária e para o legislativo, assim como o senão e os limites das minhas posições. E aí, espero ser mais maduro que a palhaçada média. Vou começar da minha posição.
Tenho relações com o atual governo do PT. Lembro que na época do Pitta, não conhecia ninguém que trabalhasse na prefeitura. E que quando ia a debates que discutiam a cidade, não havia representação da mesma, e que muitas vezes o debate se dava como se a prefeitura fosse uma entidade isolada inacessível. E não eram estes debates necessariamente tocados por pessoas de esquerda. Terceiro setor e universidade se sentiam assim. A prefeitura não tinha legitimidade. Nem ela queria fazer parceria, nem as pessoas queriam ter com ela.
Hoje conheço várias pessoas que trabalham na prefeitura. Da minha geração do movimento estudantil universitário, grande parte dela trabalha em governos ou gabinetes do PT, muitos na prefeitura. Obviamente isso influi na minha percepção do governo. Tanto porque são pessoas próximas (minha irmã trabalha em um projeto da prefeitura na área de Teatro) como por achar que são pessoas que realmente poderiam e deveriam estar trabalhando na área pública, e que tem emprego e até onde sei trabalham de fato, como eu também de fato trabalhei quando estive em um gabinete de vereador na liderança de governo. São pessoas que se optassem por outro caminho na vida, uma carreira de mercado, profissão de mercado, certamente seriam bem sucedidas.
Você pode saber onde uma dessas pessoas trabalha pela crítica que as mesmas tem da área de governo onde trabalha, que não funciona da forma ideal, da falta de capacidade para lidar com todas as imensas demandas da cidade. Ou seja, provavelmente a maioria deles não acha este governo perfeito. E de fato, não é. Por exemplo, não quero dizer, ou fazer parecer, que todos os indicados na prefeitura tenham o mesmo perfil, ou que não tenha problemas nas indicações. Estou falando do grupo que tenho contato. Ao mesmo tempo sei que há pessoas indicadas que se divertem gabando-se de trabalhar pouco, o que pode ser verdade ou galhofa. As coisas são complexas, ainda mais na gestão de uma máquina de milhares de pessoas, cada uma delas em si, complexa. O moralismo extremo e em geral histérico gerou à esquerda o mito do “PT perfeito” e à direita desboca no autoritarismo, e/ou na facção de direita, se é que hoje ainda é facção, do PSDB paulista
Quero pular fora deste primeiro ponto, que não é tão importante e um tanto enfadonho, mas quis iniciar para “resolvê-lo” e seguir em frente. Acho que existe, dentro de um governo muito maior e questões muito maiores, um grupo grande de pessoas que com falhas e senões, tem uma visão de função pública e tentam fazê-la valer. Talvez valesse mais ter essas pessoas construindo opções melhores e formas melhores de políticas públicas de longo prazo a partir da crítica, ou pressionando o governo através da oposição. Talvez não sejam jovens com difusos ideais de esquerda tentando acumular experiência e aplicá-los nas oportunidades possíveis, mas sim jovens burocratas acomodados na máquina porque não tem coragem de um enfrentamento mais radical. Talvez um pouco dos dois, ou depende da régua, nada é tão simples.
Saí do governo por opção própria, para ganhar um salário bem menor, e não tenho intenção de voltar. Meu trabalho era puramente político, parte do embate sem um papel público direto, mas com o indireto de “escudar” o governo que até meus amigos de fundo anarquistas que certamente anularão o voto, conseguiram ter parcerias e diálogo em projetos com os telecentros. Mas não era o que queria para mim. É inegável, que comparado ao descrédito do governo Pitta, houve na gestão Marta uma recuperação da mesma como instituição.
PARTE 2 – PARA ONDE
Por mais que eu discorde do governo, e por mais que ache limitado o papel do voto, e limitante a democracia passiva que se traduz apenas no voto, há uma situação concreta com conseqüências concretas para muita gente.
Eu simplesmente tenho mais simpatia e identificação por projetos de esquerda, ainda que hoje a esquerda não tenha grande simpatia por si mesma. Vou evitar o “saúde, educação, emprego”, que ocupam o discurso de todos os lados, ninguém no discurso vai se opor à isso, ainda que na prática o faça, e que em todos os partidos pouco se empenham e compram as brigas necessárias para conseguir estes objetivos. As polêmicas são assim mais interessantes. No caso de São Paulo, por esquerda, impostos progressivos ao invés de incentivos fiscais, para que estes financiem ações sociais, prioridade para equipamentos de saúde e educação na periferia, não a privatizações, instrumentos diversos (conselhos, coordenadorias) de participação popular, transparência, moradia no centro da cidade, diálogo e discernimento na questão (urbanização e geração de renda) das favelas, combate à especulação imobiliária, planejamento urbano como instrumento de desenvolvimento, mais espaço para o transporte público contra o carro particular, valorização do espaço público e independência em relação aos interesses econômicos, baseando seu apoio político na população. Fora valorização real de saúde, educação e políticas de emprego e vocação econômica. Ah, e um governo que tenha coragem de enfrentar a visão egoísta e empedernida que a classe média e alta tem da cidade.
O governo Marta significou isso? Pouco, parcialmente, e muitas vezes foi o contrário disso. O segundo governo Marta vai ser melhor nisso? Sinceramente, acho que não. Quando se vê uma proposta como o “CEU Saúde”, que nasce da cabeça não de especialistas e movimentos de saúde, mas de um publicitário e que depois o governo vai ser obrigado a implantar, seja boa ou seja ruim, isso é sinal do que o PT está se transformando e transformando seus processos internos, para cada vez pior.
Mas há uma situação concreta e uma opção concreta do PSDB do outro lado. Para confrontar o PT, o PSDB cada vez mais se aproxima da direita (vide o Secretário de Segurança do estado) e goza de imunidade perante a imprensa, o que cria um ótimo ambiente para autoritarismos, escândalos e pouca prestação de contas. Vou dar dois exemplos. O governo Alckmin cansou de anunciar que iria construir um centro de formação de jovens onde funcionava a Casa de Detenção do Carandiru. Um belo dia disse que não ia mais fazer isso e deixaria ali apenas uma área verde, o que seria mais “útil”. E claro, bem mais barato para o governo. Saiu só uma matéria e nenhum editorial, nem questionamentos, nem pressão quanto a essa mudança de rumo. Imagina se o governo Marta faz como fez Gabriel Chalita, e adultera uma pesquisa para só serem divulgados os resultados positivos da rede de ensino estadual, escondendo os dados negativos?
Erundina não se viabilizou como uma opção de esquerda, sequer como voto de protesto. Sua opção pelo PMDB é um caso claro onde a soma política do dinheiro do Quércia com o nome respeitado de Erundina dá zero. Um anula o outro. E a própria Erundina adotou um discurso confuso que atira ora para um lado, ora para o outro, em um dos casos mais surpreendentes de desorientação política.
É nesse tipo de encruzilhada que nos deixa e nos limita o voto e ação política a ele relacionada. Por isso que a democracia, mesmo a limitada atual, vai e tem que ir muito além dele, quanto mais além do voto no majoritário. Semana que vem, ponderações sobre o papel e até que ponto pode contribuir um voto bem calculado para vereador (pequeno guia de passos para escolher o seu) e os limites do voto, da representação e da espera e “fé” que acompanham este modelo de democracia.
Já da parte 3, o seguinte comentário. Compare o romance “Ensaio sobre a lucidez”, o mais recente de José Saramango, onde o autor a partir de sagaz observação da atualidade cria um romance que questiona a falência da democracia, onde o povo, ao constatar a falta de opção, e que o poder real não se encontra nas mãos dos políticos, mas do poder econômico, não vota e os brancos e nulos ganham de qualquer partido versus a neurótica e desesperada campanha “Choose or Loose” (escolha ou perca) nas reprises do Vídeo Music Award da MTV americana, que a brasileira está reprisando (entre outros horários, sexta 21 hs) e que implora para que jovens americanos se registrem para votar (obviamente só em duas opções quase iguais, democratas ou republicanos). Durante o show do Outkast, mais do que mostrar um dos melhores grupos do mundo, o diretor de imagem focava o banner da campanha. Desespero total diante de falta de legitimidade, e do vazio político X opções de consumo.
SEMANA (S) QUE VEM
PARTE 3 - O EX-PAPEL (HOJE A URNA É ELETRÔNICA) LIMITADO DO VOTO
PARTE 4 – PARA ALÉM DO VOTO E DESTA ELEIÇÃO (PÓS PT)
PARTE 5 - PEQUENO GUIA TÁTICO PARA VOTAR EM VEREADOR
PARTE 6 - NÃO TEM PARTE 6
CURTAS
- Seleção de músicas fossa: começa com “For no One” dos Beatles, segue com “Testamento” de Vinícius e Toquinho, chega no fundo com “Espelho” de João Nogueira e Paulo César Pinheiro e “Vai saudade” de Humberto Teixeira, interpretação da Velha Guarda da Portela (porque no fundo do poço mora o samba). E sai, ou tenta-se sair dela patinando no atoleiro em “Não tem nada não” de João Donato, Marcos Valle e Eumir Deodato (trinca de ases).
- Parece que o Simoninha, o Max de Castro, a Maria Rita, o Jairzinho, a Luciana Mello, o Davi Moraes, a Bebel Gilberto, a Preta Gil, o Pedro Camargo Mariano, Moreno Veloso, o SNZ, Wanessa Camargo, Léo Maia, Sandy e Júnior (tenho certeza que devo estar esquecendo de alguém) vão se reunir, como no clip de “We are the world”, em um imenso coral para uma regravação de “Ainda somos os mesmos e vivemos como os nossos pais” de Belchior. Ainda que eu ache que não era isso em que ele estava pensando quando fez a música.
- Muitos acima devem ser gente finíssima, mas fazendo música é triste, outros tem até umas canções legais, outros ainda são puro negócios, outra parece até reencarnação, mas quem diria que a MPB, que veio para ser democrática e popular, haveria de virar oligarquia?
- Grande filho é o Donatinho, o “garoto-prodígio e seu teclado estratosférico”, que acompanha a banda do seu pai, o genial João Donato. Toca muito.
- Das Olimpíadas deixo como sugestão ao Comitê Olímpico Brasileiro a idéia de gerar atletas antes mesmo do berço, programados para serem imbatíveis. Por exemplo: imagina a geração de cinco filhos nascidos de Daiane dos Santos com Roberto Carlos. Um pequeno ser de puro par de coxas, seriam as mais potentes pernas da história da humanidade. Se menina executaria o quádruplo twist muito mais que carpado, que carpa é peixe pequeno, pirarucuado, ao som de brasileirinho remixado pelo DJ Marky Marky, nos 350 bpms. Se menino correria o salto com barreira pulando duas de cada vez, e depois aproveitaria o pique final para cobrar uma falta chutando a pelota a 120 km por hora, marcando 1x0 no futebol olímpico. Só por favor não me cruzem o Galvão Bueno com o Datena para narrar isso que o ouvido da gente não güenta não.
DICAS DE LEITURA
Ainda no campo da música o caderno Mais! Publicou interessante série de textos sobre seus rumos. Aponta para vários lados, e traz opiniões e visos diversas, por isso mesmo é bem legal.
Era uma vez uma canção – entrevista com TinhorãoFina estampa – entrevista com Luiz TatitA MPB do B – resenha sobre série de livros “Decantando a República” Remix de autor - artigo de Hermano Vianna, antropólogo e irmão do Herbert
- Da entrevista com Tinhorão Marcelo Coelho extraiu este texto sobre o mesmo, o discurso politicamente correto e o publicitário o que tem um pouco a ver com o meu texto acima: Tinhorão
- E próximo ao tema, Fernando Gabeira, sobre as relações entre a cultura brasileira e estrangeira. Alguma coisa entre Pelé e a Mulher-Gato
- Nostalgia e inveja. Estas sãos as minhas impressões pessoais ao ler o texto “Hay Bush, soy contra” de Adriana Maximiliano, cobrindo as manifestações contra a convenção republicana em Nova York. Nostalgia do meu trabalho cobrindo os protestos em Praga, o qual o estilo do texto tanto me lembrou. Inveja, porque desde Gênova que eu não queria tanto estar cobrindo um protesto novamente quanto estes nos EUA. E frustração, por não ter dado continuidade ao trabalho. Bem, ao menos resta a satisfação de já ter feito um trabalho assim e de ler uma reportagem muito bem escrita, que nos transporta para lá, com personagens e links para os impagáveis sites de protesto. O texto é excelente e faz o que eu espero ter conseguido fazer em meu livro. Porque os jornais não publicam um texto assim, a não ser que seja traduzido de um veículo estrangeiro?
- Este é “o” cabra. Um tremendo jornalista. Xico Sá, no nominimo, de Juazeiro do Norte e Vale do Jaguaribe, em matéria de texto sensacional sobre pistoleiros no interior do Ceará.
A era da pistolagem high-tech
- Do mesmo nominimo O conselho obsoleto, por Pedro Doria. O texto talvez seja um pouco exagerado, mas acho que o sentido, ao analisar o proposto Conselho Federal de Jornalismo X a Internet e seus blogs, está correto. Eu penso às vezes se não deveria me organizar ou, melhor, já ter me organizado faz tempo, partindo do Veja Q Porcaria, (ah, as reminiscências inúteis em torno do passado...) para me profissionalizar nessa direção.
- Dan Wetzel é um colunista americano de esportes do site Yahoo. Foi cobrir as olimpíadas. Seus textos são bem conservadores, para dizer o mínimo, do ponto de vista político. Mas ele escreveu um belo texto sobre a final de futebol feminino, sobre o time do Brasil. É óbvio que o texto puxa um pouco a patriotada ao dizer que Mia Hamm inspirou meninas no Brasil, mas está acima disso ao olhar e dizer que “o futuro” do futebol feminino, e o melhor time, foi o Brasil.
The sincerest form of flattery
- Eu sei que algumas indicações que faço andam estranhas, de autores cujo o conjunto da obra é um tanto complicado. Mas há textos e textos, e textos que acertam. Vou indicar por exemplo um de Gilberto Dimenstein, pessoa que já disse que haveria uma nova versão do conflito de classes não mais entre capital e trabalho mas sim entre trabalhadores de carteira assinada versus trabalhadores informais (sic, muito sic). O que acho ser uma bobagem imensa, Mas este texto, especificamente, achei correto.
Prioridade de Serra à saúde é social ou eleitoral?
DICAS DE CINEMA (em cartaz, em SP, ainda que em horários esdrúxulos)
- Sherk 2 – Que vergonha... Assisti ao filme faz tanto tempo, gostei tanto, e esqueci de indicar aqui. Hilário e muito bem feito, para rir muito. Isso é filme para criança?
- Igual a tudo na vida - O novo filme de Woody Allen segue a pegada dos recentes filmes do diretor. Não tem como errar ao assisti-los. São todos muito bons. Este talvez seja até o melhor desta safra, com o subtexto existencial por detrás do humor. O ator Jason Biggs, faz um jovem “Allen”, o seu personagem típico que a dublagem da Globo dá aquela voz ridícula, um escritor de comédia judeu no início de carreira. Allen faz seu alter ego mais velho, cético e paranóico. Entre frases geniais e piadas inteligentes em cima de piadas inteligentes, beleza, fotografia, trilha sonora, planos e atuações excelentes encaixadas com a discreta perfeição orgânica de um “anti-Olga” (a julgar pelo trailer). Inclusive uma das melhores piadas do filme, é quando o personagem judeu paranóico diz ao jovem “Você não quer morrer em um filme preto-e-branco ao som de violoncelos”.
- Fahrenheit 11/9 – O documentário de Michael Moore pode ter uns problemas menores de ignorar algumas informações, mas você sai muito mais informado do que desinformado sobre o governo Bush após vê-lo. Apesar da dica, adiciona-se aqui crítica pertinente de Demétrio Magnoli ao filme... Filme de Michael Moore abomina a história
- Histórias mínimas –Grandíssimo filme, dica um pouco acima das outras. Na imensidão da Patagônia, três histórias se cruzam. A de um velho em busca de seu cachorro e de perdão, a de uma jovem em busca de um prêmio e do glamour da televisão, e de um caixeiro viajante em busca do amor. Um filme muito delicado é belo, sobre histórias que acontecem muito mais na imaginação dos personagens do que na realidade.
- Bicicletas de Belleville – Animação francesa genial e maluca sobre uma avó e um cachorro que partem para salvar o neto ciclista raptado. Caramba, será possível que todo o filme atualmente seja crítico dos EUA?
- Diários de Motocicleta – Bem, muito já foi dito sobre este filme, e eu até pensei em ressuscitar uma entrevista que fiz com a filha do Che Guevara e que nunca foi publicada. Talvez o faça. Mas enfim, é uma bela viagem pela América do Sul, as locações e a atuação dos atores são emocionantes. Mas não consigo deixar de achar curioso, apenas isto, que um filme tão “esquerda-católica-socialista-latino-americana” (vide P&B a lá Sebastião Salgado no filme) tenha sido feito por um banqueiro. Eu não consigo desgarrar minha cabeça deste tipo de incógnita, por mais inúteis que elas sejam...
quarta-feira, setembro 01, 2004
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