sábado, outubro 23, 2004

VIAJANDO

Domingo à noite, hora morta, chove lá fora, e eu decido rodar o mundo sem sair do lugar. A turnê começa motivada pela amiga que faz anos não via, que me achou pelo Orkut e pede notícias minhas desde Boulder, Colorado. Mando as poucas que tenho e pergunto as dela. Não sei nada do lugar, exceto que ela mora na “cidade do hotel do Iluminado do Kubrick”. O que soa bem assustador, como se ela tivesse que tomar cuidado com Jack Nicholson empunhando um machado e rios de sangue que jorram dos elevadores do local...

Sigo à viagem com o colega que está em um avião para reencontrar a namorada na Espanha. Desejo sorte, registro saudades e faço uns acertos com ele enquanto o sujeito dorme sobre o Atlântico.

Passo adiante e dou continuidade ao diálogo sobre um livro de Edward Said, que a editora em que trabalho lançou, e que uma amiga em Londres comprou em um seminário em homenagem ao ativista e pensador palestino em Londres, após um ano de sua morte. Aqui, nenhum jornalista deu muita bola para este assessor de imprensa quanto a isso. Tudo bem. Somos muitos e o espaço, pouco.

Decido girar de vez o mundo, e viajando no tempo e espaço, escrevo para um ex-amor, não sei se em Möst, Praga, Liberec ou em que cidade, em que hospital ela anda, pedindo as mesmas notícias que a amiga de Boulder pede para mim.

Com muita saudade da minha namorada, mando aquele texto de Robert Kurz que ela havia me pedido por e-mail, e por algum problema da lista papelotes, ou do seu desmoderado moderador, ela nunca havia recebido (se tem o mesmo problema, não dê reply, mande direto e reclame). Não que ela vá ler nestes dias em que está desbravando, brava que é, o norte da Argentina: Tucuman, Cafayate etc. Brava no bom sentido, para ela não ficar comigo no mau.

Outro alô, e mais notícias, sempre as notícias, da minha irmã que foi morar na Paris para onde todo mundo quer ir, e onde ela foi parar meio sem querer querendo, tendo que agüentar todo mundo dizer que era chique a dura batalha que não tem nada de chique. Dizer que é chique é uma merda de preguiça mental. Quem sabe o que é, sabe que foi sim extraordinário pela superação.

Depois, um contato-convite com pessoa querida da mais exótica e distante das culturas: a carioca. Para que ele venha em mais uma excursão antropológica ao planalto, combater os bandeirantes de merda que aqui residem e votam naquele sujeito com nome do acidente geográfico que nos separa do litoral (deve ser o desejo incosciente de ir á praia que provoca este voto).

Leio na Folha de S. Paulo as notícias que a ex-colega de faculdade traz do debate entre os candidatos à “dono do mundo”, Bush e Kerry, no Missouri, e por telefone, aquele alô para minha mãe que com minha outra irmã aproveita o feriado em Santos, onde do mundo não se decide nada.

Não deu tempo de visitar pessoalmente meu avô em Higienópolis, ele que dizia que ia “correr o mundo”: Guarulhos, Santo André, se não me seguram vou até Diadema. Adiei de novo.

O filósofo esloveno Slavoj Zizek, avisa desde a pequena Ljubljana, que tem grande vontade de vir, mas só pode visitar o Brasil depois de fevereiro. No seu texto sobre uma nova luta de classes, entre as favelas excluídas e comunitárias versus uma nova classe global simbólica, de mídias, universidades e gestores de capital, urbanos/globalizados, com mais semelhanças e referências comuns entre si nos milhares de quilômetros conectados por e-mails, filmes, seriados e aviões, do que com aqueles que fisicamente moram a dois quilômetros deles.

Um rapaz que faz samba e joga basquete, me mostra suas músicas na rua, estilo clássico, talvez até demais, que sonha levar ao “Zeca”, como se falasse em Meca, donde partiriam milagres. O problema é que não tem como ser contatado. Sem telefone, fixo ou celular, sem saber mexer no computador, sem grana para telefonar, sem residência fixa entre aqui e lá. Faz um a cobrar, sugiro, que ligo de volta para onde tu estiver.

Para a amiga de Boulder, que perguntava por onde eu andava, respondi que nas mesmas ruas de sempre, da zona norte da cidade-monstro em que nos conhecemos. Entro na internet e vejo fotos do lugar. As melhores imagens são da viagem da menininha loira Regan, tiradas por Meinhardt Greeff, que deve ser o pai ou mãe dela (Meinhardt é homem ou mulher?), e jogou a excursão familiar para o mundo ver.

Montanhas, lagos, canyons lindos, alces, aquelas pessoas com aquela cara de americanos. Lugar idílico pelas fotos da pequena Regan. Bonito, dá vontade de conhecer.

As fotos me lembraram que as montanhas de Boulder não são apenas o cenário de O “Iluminado” de Kubrick. Partes das mesmas filmagens, de helicópteros sobrevoando uma floresta do início deste filme, foram emprestadas para o fim de outro, a também obra-prima Blade Runner, de Ridley Scott. As mesmas cenas representando em um caso, o isolamento que leva a loucura e ao terror, e no outro, a liberdade, a fuga da opressão em busca de um futuro desconhecido, mas aberto à possibilidade do amor. As mesmas montanhas de Boulder. Questão de montagem? Faz tempo que eu não vejo Blade Runner e hoje de manhã por acaso me peguei com vontade de assisti-lo pela sei lá, 20ª vez. Talvez quando ela voltar da Argentina.

O mundo é complicado, simples, ambíguo, com pessoas querendo controlá-lo e eu sempre atrasado para algum lugar, com algum trabalho estourando prazo. E vasta, muito vasta esta Terra. Sonhar ao menos é de graça. E não têm preço os amigos que caminham por este planeta. A gente vai deixando pedaços por aí, pequenos impactos absolutamente imprevisíveis da nossa presença nos outros, nos lugares. Tudo isso de dentro do meu escritório, na noite mofada de domingo. Com vontade de vadiar pelo mundo livre. Ao menos há a amizade contra a claustrofobia.

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