segunda-feira, março 19, 2007

Davi x Golias no Bexiga - de Gulherme Wisnik

"Roubei" este texto da Folha de S. Paulo, porque merece ser lido independente das caretices da informação restrita "para assinantes" na web.

GUILHERME WISNIK

Um dos maiores patrimônios da cultura brasileira viva, teatro Oficina continua a disputa com Silvio Santos

MAIS UM capítulo na disputa entre o Grupo Silvio Santos e o teatro Oficina: depois de induzir o destombamento e a demolição de sobrados de interesse histórico nos terrenos que adquiriu para a construção de um shopping, o Grupo SS continuou a "limpeza" da área demolindo a sinagoga Ohel Yaacov, uma das primeiras de São Paulo. Com os entulhos, tapou duas janelas do teatro, envolvendo-o em escombros. Zé Celso, por sua vez, encontrando uma estrela de Davi metálica em meio aos destroços, passou a usá-la em cena como um amuleto contra a ofensiva do Golias-Silvio Santos. Seu poder é revelar os teatros latentes por trás de cada personagem, incluindo o seu próprio, e reteatralizá-los.
Encaixadas sob os arcos de tijolo do paredão dos fundos do Oficina, as janelas foram abertas durante a montagem de "Os Sertões", indicando a intenção de expansão do espaço cênico atual (um palco-pista, como um sambódromo) para a desejada "apoteose" do teatro de estádio no terreno de trás, hoje um estacionamento.
Nascido de uma colaboração inédita entre os arquitetos e a companhia teatral, o teatro Oficina é um dos maiores patrimônios da cultura brasileira viva e um exemplo de radicalidade única no mundo. Radicalidade que não nasceu nem se alimentou de caprichos ou meros interesses expansionistas, mas, ao contrário, de uma necessidade artística: um auto-sacrifício ritual, masoquista como a própria estética tropicalista. Essa é a história inscrita no seu espaço, e determinante na decisão aparentemente insana de se demolir o antigo teatro para a construção do atual, acarretando mais de uma década de impasses em que o Oficina permaneceu em ruína.
O projeto anterior, feito por Flávio Império, "aproveitava" a estreiteza e declividade do lote construindo uma única arquibancada em frente a um "palco italiano". Ocorre que, com o tempo, o experimentalismo vanguardista da dramaturgia ultrapassou a sua estrutura física, ainda presa ao ilusionismo estático da caixa cênica. Era o coro que tomava posse do espaço, em uma concepção de encenação que tendia para o ritual, abandonando o paradigma do teatro como um lazer burguês, e radicalizando sua condição de festividade de massa, em aproximação com o Carnaval. Inspirado na tragédia grega e no teatro nô japonês, o projeto de Lina Bo Bardi e Edson Elito assumiu o terreno existente como uma pista em rampa, um "teatro de passagem", ligando a rua a um parque festivo.
Com o poder da grana e das "leis do mercado", Silvio Santos vem comendo por fora e cercando o teatro, ameaçando encapsulá-lo. Cabeça dura, e ainda mais ambicioso que o seu adversário, Zé Celso responde na mesma moeda: não faz concessões e pleiteia a cessão do terreno do "inimigo" para a construção do parque-estádio que completará o projeto original do Oficina. Sua ousadia desafia um dos maiores tabus da nossa sociedade: o direito de propriedade. Pois ele bem sabe que se o Brasil for capaz de eleger e cultivar os patrimônios que o mantêm vivo, Davi poderá vencer Golias.

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